segunda-feira, 7 de junho de 2010

A garota, o homem e o médico que se julga Deus

GAROTA:

Aos 16 anos me encontro em depressão pela segunda vez. Acho que são aqueles livros que eu leio. Lembro-me que Schopenhauer falou certa vez que "A nossa felicidade depende mais do que temos nas nossas cabeças, do que nos nossos bolsos". É... No meu bolso eu sei que tenho muita coisa, mas na cabeça é que eu não tenho certeza... Ou quem sabe os namorados que eu arranjo por aí. Alguns já me disseram que não entendem o motivo de eu ser assim... Mas assim como? Ou talvez a minha família cheia de defeitos. Muitos gritos e brigas todos os dias! Não sei pra quê todo esse estresse... O caso é que não me sinto bem comigo mesma. Saca gauche? Pois é... Estou alheia da vida há muito tempo, embora eu sempre me esforce para melhorar. Não consigo mais ficar onde estou. Fato! Bom, agora eu vou acabar com isso, pois sei que o sofrimento da subvida é pior que a dor física, que, acho eu, nem vou sentir tanto. Tomo um banho quente e demorado, penteio meus longos cabelos com esmero e prendo-os num rabo-de-cavalo, depois, visto um vestido confortável e a minha velha e boa sandália de couro. Pego meu iPod e vou pra rua. Dave grita no meu ouvido: "Is someone getting the best, the best, the best, the best of you?”. Realmente, alguém está tomando o melhor de mim. Alguém ou algo... Não sei. Olho para todos os lados, procurando um jeito de escapar. Pode ser o mais simples possível, mesmo sem poesia ou romance, não importa. Ah! Moto em alta velocidade! Ótima oportunidade. O impacto vai ser tão forte que eu nem vou sentir dor. Um... Dois... Três... JÁ!


HOMEM:

Finalmente hoje é meu dia de folga! Sem estresse do trabalho, burocracia ou pessoas chatas me rodeando. Hoje vou dar um passeio, esquecer os estudos um pouco. Defendi minha tese de doutorado há dois meses. Vou subir mais um degrau. Hoje, posso dizer que sou um homem feliz e a poucos passos da realização pessoal. Dou aula de Literatura numa Universidade Federal, ainda sou substituto, mas eu estou perto de ser integral. Estou casado com uma mulher linda que amo e que o sentimento é recíproco. Meu garoto está com quatro anos agora e é uma peste! [risos de satisfação] Só de pensar o quanto eu sofri pra escalar essa montanha, meus olhos começam a marejar... Morei na favela, filho de mãe sem pai, amigos desviados do caminho tido como certo para a sociedade... Tive tudo para já estar morto por uma bala perdida com endereço certo, mas contrariando a "ordem das coisas", hoje eu venci na vida, claro que eu digo isso do ponto de vista do capitalismo, idiota e necessário. Passei o dia com a minha esposa e meu filho, mas agora, às 16h vou pegar minha moto e dar uma volta. Tomo um banho, visto aquela velha combinação de jeans e camiseta branca pego meu celular, os fones de ouvido e meu capacete. Minha mulher odeia minha moto, mas eu tenho uma sensação de plena liberdade quando a estou pilotando. Sei dos riscos que corro, por isso, em área urbana sou mais prudente até do que o necessário. Antes de partir, ligo o MP3 Player do meu celular e escuto Highway To Hell do AC/DC! Existe música melhor pra se andar de moto do que AC/DC? Ao sair, mando um beijo pra minha mulher, olho pro meu filho, ergo a mão fechada e levanto o indicador e o mindinho! O garoto faz o mesmo e dá uma gargalhada. Assim, lá vou eu com o vento no rosto e a liberdade na mente. Droga! Esqueci minha carteira com meus documentos! Agora é torcer para não ser parado numa blitz. Mas o dia está tranquilo, sem trânsito, vou andando a esmo me despindo das preocupações triviais. Canto para todos ouvirem: "I'm on a highway to he-"


MÉDICO:

Seis anos cursando, mais dois anos de residência, apenas um vestibular. Ainda fui o laureado da minha turma, mas sinceramente, eu não sei pra quê tanta besteira. No momento, estou de plantão num hospital público. Um dos maiores do estado. A fila de pacientes come solta lá fora enquanto eu procuro sexo casual pela internet. Como sou doutor, as cachorras correm atrás de mim. Casado? Sou sim e o que isso tem de mais? Monogamia é para os idiotas e fracos! Para mim, quanto mais, melhor. Droga! Alguém me chama, parece que ocorreu um acidente com um motoqueiro, algo do tipo. Malditos motoqueiros! O mundo seria melhor se não existissem motos! Teríamos bem menos acidentes, bem menos imprudência no trânsito! Esse cara devia estar atrasado pra pegar a mulher na cama com outro e acabou furando um sinal vermelho e atropelando alguém! Vai morrer nos corredores. Um enfermeirozinho qualquer me informa que o motoqueiro está sem os documentos, mas como estava com capacete caiu de certa forma que não corria risco imediato de morte. Já a menina, uma coisinha linda, estava mais pra lá do quê pra cá! Pois bem! Quem está na moto sempre tem a culpa. Dou assistência à garota. Toda a minha atenção é voltada para ela e dou a ordem para deixar o homem onde está que eu mandarei alguém para cuidar dele, mas o detalhe é que eu não vou chamar ninguém! Ele é um indigente e vai morrer como tal! A menina também não tem documentos, mas será tratada como uma deusa: o sacrifício necessário para a sua vida pulsar novamente será feito sem medir meus esforços. Aqui eu mando, decido quem vive e quem morre! Podem me chamar de Deus, porque aqui e tenho o dom da vida e da morte. Depois que tudo estiver bem, querê-la-ei para mim! Os primeiros socorros são feitos e logo eu a encaminho para uma sala de operação. Quatro horas depois dela entrar na sala termina todo o procedimento e a pequena deusa agora está sedada, em coma induzido para não sentir dor. A essa altura aquele maldito piloto deve estar ainda agonizando em seu leito de morte. Vou me certificar para que ninguém o encontre. Duas semanas depois minha visão do paraíso acorda e eu posso ver seus doces olhos azuis ainda perdidos, sem saber o que está acontecendo:

Médico: Bom dia!

Garota: Onde estou?

Médico: Você sofreu um acidente de moto. Algum... Imprudente deve ter avançado um sinal vermelho e te atropelou. Mas não precisa se preocupar, porque você está bem até demais.

Garota: O quê? E quanto ao motoqueiro?

Médico: Bom, infelizmente ele não resistiu...

Nesse momento a menina começa a chorar, primeiro bem baixinho e depois compulsivamente. Tentei acalmá-la, mas foi em vão. Ela olha para mim com um olhar de extremo ódio:

Garota: Eu me joguei na frente daquela moto! Queria me matar e você me salva?! Com certeza o estado daquele homem era melhor que o meu! Porque você me salvou?

Médico: Você se jogou na frente da moto? Mas eu pensei que...

Garota: Pensou errado! Agora um homem inocente morreu por sua culpa! Eu sei que eu provoquei o acidente, mas se você tivesse ajudado o homem, com certeza ele estaria bem, mas agora... O que resta pra mim?

Médico: Mas...

Enquanto eu me levanto lentamente e vou saindo do quarto, ela continua a me chamar e perguntar, mas eu não consigo prestar atenção! Eu matei um homem! Tá certo que ele já foi enterrado como indigente, mas essa menina está revoltada. Pode dar com a língua nos dentes e eu posso ser processado por negligência médica... Isso não pode ficar assim. Pego uns calmantes que tenho guardado. Certa dose pode matar uma pessoa com certeza:

Médico: Tome minha querida. Isso vai solucionar nosso problema...

Garota: O que é isso?

Médico: Tome!

Garota: Isso vai me curar?

Médico: É isso que você quer?

Garota: Não! Quero morrer em paz, só isso...

Médico: Então tome logo isso!

Garota: Quanto tempo eu vou ter depois que tomar?

Médico: Algumas horas... não muitas!

Garota: Tudo bem... Eu tomarei, mas primeiro ligue para este número e avise minha mãe. Mas só o faça quando eu estiver no necrotério!

Médico: Tudo bem! Eu dou a minha palavra!

Garota: Sua palavra não me serve de nada, mas eu não tenho escolha...

A menina tomou tudo enquanto eu saía da seu quarto. Horas depois eu liguei pra sua mãe e disse o que aconteceu. A verdade? A minha verdade! Agora é hora que voltar pro meu consultório. Ainda não arranjei diversão para hoje.

Nenhum comentário:

Postar um comentário